Depois do susto na caixa d'água, o Chico Belo aquietou-se por um bom tempo. Inclusive, meu irmão mandou-o para Morrinhos, no interior de Goiás, com o propósito de tomar conta de uma boiada e que ficasse por lá até que as reses fossem vendidas. Nos finais de semana, quando ocorriam os leilões, meus irmãos iam para lá, hospedando-se em hotéis ou pensões, enquanto o Chico Belo dormia em um barracão, juntamente com vários outros boiadeiros.
Nos leilões e rodeios, sempre havia, entre os vaqueiros, um cozinheiro responsável pela gororoba do dia a dia. Não precisava ser um grande chef de cuisine para satisfazer aquele bando de homens, quase sempre bêbados. Bastava saber fazer um arroz com suã, feijão, charque ou carne moída e, de vez em quando, assar uma carninha. Dessa vez, lá em Morrinhos, o cozinheiro era o Aléssio, gay assumido e já meio coroa.
O povo dizia que o Chico era bem dotado, inclusive tinha o apelido de "Chico Tripé". Assim que o Alessio soube da fama, começou a derrubar as asinhas sobre ele, preparando-lhe pratos e sopinhas especiais.
Numa tarde, em que o Chico Belo chegou meio bêbado, o Alessio resolveu assediá-lo e quando nosso amigo preparava-se para deitar, o cozinheiro caiu em cima dele. Chico Belo já tinha descalçado uma das botas e num reflexo defensivo, meteu o grosso salto de madeira na testa do outro. Largou o cozinheiro por ali, sangrando, e foi pedir guarita aos meus irmãos, na segurança do hotel.
Naquela mesma noite, foram todos a um arrasta-pé num galpão improvisado, ali por perto dos currais e barracão. Estenderam umas lonas, seguradas por bambus, penduraram um lampião de carbureto no teto e "dá-lhe pinga, sanfona e pandeiro".
Chico Belo levou um farolete para guiá-lo na escuridão do caminho e chegando ao bailão, colocou o instrumento no bolso das calças, caindo na farra. Tirou para dançar, uma das caboclas, daquelas goianas bem parrudas e a mulher foi logo esfregando-se nele, toda assanhada.
Na verdade, a mulher "acoxava" ele só para provocar o amante que também estava por ali, dançando com outras. E o Chico Belo, pensando que estava agradando,foi logo avisando, num tom safado: _ Calma, morena, que o volume que você está sentindo, é só o farolete que eu guardei no bolso!
Não demorou muito até que o namorado da goiana invocou com a sem-vergonhice da mulher e partiu para cima do casal. Com um soco certeiro, derrubou o Chico na poeira do salão. O pobre, vendo-se acossado em meio a tantos desconhecidos, não teve duvidas: arrancou do bolso o farolete e num arremesso certeiro, atingiu o único lampião que alumiava o bailão.
Naquela escuridão toda, o barraco veio a baixo e o fuzuê ardeu feio! Mais uma vez Chico belo conseguiu safar-se da morte por vingança passional. Acabou seus dias, numa roça de milho, por conta do veneno de uma jaracuçu do rabo grosso.
Como exemplo das comidas fortes e saborosas, costumeiras nesses ranchos e fogões de boiadeiros, passo essa receita de:
SUÃ COM ARROZ: 3 quilos de suã (vértebras com parte do filé suíno); 4 ou 5 xícaras de arroz; alho; sal; cebola; cheiros verdes; pimenta a gosto; manjericão; louro; limão; azeite e 1 colher (sopa) de colorau. Compre suãs bem carnudos mas não muito grandes e tempere-os com sal e limão. Bata os demais temperos no liquidificador com 1 xícara (chá) de água e junte-o ao suã, deixando marinar por algumas horas.
Frite os pedaços em óleo quente, numa panela grande, até ficarem bem dourados. Acrescente o colorau, um tanto do tempero batido e vá juntando água fervente, aos poucos, até ficarem macios. Misture o arroz lavado e água fervente suficiente (uns dois dedos acima da mistura), acerte o sal e tampe a panela. Deixe em fogo baixo até o arroz ficar cozido, porém, ainda úmido. Espalhe salsinha por cima e sirva de imediato, acompanhado de salada de folhas.


O amigo serviu feijoada e tomaram várias caipirinhas. A sobremesa foi uma espécie de torta de chocolate, chamada Tiramissú, deliciosa mas que, definitivamente, não combina com feijoada e cachaça!
Pelo meio do caminho, entrou numa loja das Casas Pernambucanas, mas a balconista ruiva, "com unhas de puta", foi categórica: _ O toilette é só para funcionários!

Muito embora já tenha passado a casa dos setenta, é uma mulher vaidosa e bem bonitona. Não aparenta a idade que tem... Disse-nos que na juventude, ela e as irmãs foram famosas bela beleza. Eram conhecidas como as "morenas da paineira", pois moravam numa chácara, pertinho da cidade e na porteira de entrada, havia uma árvore dessa, bem grande.

O "pai de santo" afirmou-lhe que o marido voltaria para casa, dentro de três semanas, em troca do anel de brilhante que ela trazia no dedo. Ela concordou e aguardou. Passaram-se duas, três, quatro semanas e... nada!
Numa tarde, lá pela hora da "Ave-Maria", a Tia viu estacionar à porta, uma perua de resgate. Dois homens entraram pela porta da sala, transportanto o corpo de seu marido. O caminhão, carregado de laranjas, havia tombado numa curva, próxima à Atibaia e o único endereço que encontraram nos documentos do acidentado, foi aquele, o da casa da Tia.
Meu pai e meus irmãos sempre "mexeram com vacas". Vacas leiteiras, bois de corte, touros reprodutores, bezerros para engorda e por ai a fora... Passei minha infância e adolescência sentindo aquele cheiro de curral: misto de leite, feno e bosta fresca de vacas. Até que era um cheirinho honesto e aconchegante!
Sinto saudade de quando meu pai ou algum dos irmãos mais velhos me acordava, tipo quatro ou cinco horas da manhã para acompanhá-los até ao sítio. Iam buscar os latões cheios de leite e trazê-los de volta à cidade para serem entregues na LECO, companhia de laticínio da região. Eles carregavam-me consigo, um tanto para fazer companhia e mais para abrir as porteiras que eram inúmeras
O local onde as vacas leiteiras ficavam chamava-se estábulo ou retiro e o empregado encarregado da ordenha era o retireiro. Tivemos vários retireiros, pois era uma profissão dura e poucos aguentavam o tranco por muito tempo. Lembro-me de um deles, chamado Francisco e apelidado pelos meus irmãos de "Chico Belo". Nada a ver com beleza, pois o homem era feio pra caráio e foi justamente por ser feio que meus irmãos, maldosamente, assim o apelidaram.
O Belo era muito briguento e por ser magrinho, vivia apanhando de todo mundo nos forrós que frequentava. Voltava para casa completamente bêbado e machucado, guiando sua carrocinha de dois assentos. Aliás, de tão zonzo, ele não guiava nada e quem se encarregava de levá-lo até à porteira do sítio era o coitado do burro. De tanto trotar por aqueles caminhos, o animal já estava condicionado ao trajeto.
Chegando em casa, descarregava toda a valentia na pobre da mulher, que apanhava mais que cabrita na horta. Dizem que ele costumava bater nela com o gato: pegava o bichano pelo rabo ou pelo cangote e socava-o nas costas e pescoço da esposa. A coitadinha ficava toda arranhada e mordida pelo gato endoidecido.
No domingo seguinte, enquanto o Belo curtia a bebedeira da véspera, deitado na varanda do seu rancho, um bando de cavaleiros invadiu o sítio, gritando e dando tiros para o ar. Na frente da turma, vinha meu irmão, montado num cavalo preto e com um chapéu e lenço idênticos aos usados pelo cigano.
O coitado, sem saber o que fazer, subiu no telhado e foi esconder-se dentro da caixa d'água. Puxou a pesada tampa de amianto e ficou ali, quietinho, com água pela boca. De vez em quando, meu irmão dava um tiro para o ar, em meio à gritaria dos comparsas. Por mais de uma hora o safado ficou tiritando de frio, com medo de descer.

